domingo, 27 de julho de 2008

Jean-Luc Godard




por André de Leones




O auto-proclamado “mais célebre dos esquecidos” construiu uma obra fílmica sem igual, geralmente associada a adjetivos fáceis como “hermética”, “intelectualizada” e mesmo “chata”. Gosto de pensar que seu hermetismo é superficial ou aparente mesmo para quem não tem, como ele, uma biblioteca na cabeça, e que seus filmes são “chatos” apenas para os desinteressados ou preguiçosos. A verdade é que, ao contrário do que ocorre com a maior parte do que assola os cinemas do mundo, para assistir a um filme de Godard é necessário abrir os olhos. Se o que se vê é “pesado”, é o peso de um questionamento filosófico tão amplo quanto honesto e necessário.Nascido em Paris em dezembro de 1930, filho de um médico, Godard começou como crítico de cinema da célebre Cahiers du Cinema. Tal publicação foi o ninho de alguns dos principais expoentes do que viria a ser a Nouvelle Vague, movimento cinematográfico francês que estourou em fins da década de 1950 e que almejava uma renovação no modo de ver e fazer filmes. Além de Godard, integraram a “nova onda” François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette, Robert Bresson, Claude Chabrol, etc.Proclamando a “política dos autores” e antecipando, em certo sentido e na maneira de filmar, alguns dos slogans de 1968 (“é proibido proibir”, “todo o poder à imaginação”, e a analogia é minha), essa trupe renovou as cinematografias francesa e mundial com o uso abusado da câmera na mão, de planos-sequência e travellings tresloucados e da ostensiva improvisação sobre os scripts. Inventaram, ainda, coisas como o jump cut (corte descontínuo), mas tudo isso com o intuito expresso de colar o cinema à realidade, transformando tanto um quanto o outro (daí a célebre frase de Godard, segundo a qual “filmar é um ato político”). Acossado (À Bout de Souffle, 1959), seu primeiro longa-metragem, já trazia impressa, por assim dizer, “a verdade a vinte e quatro quadros por segundo. Por meio de cortes descontínuos e travellings colossais, Godard filmava ali a gratuidade da vida. O marginal interpretado por Jean-Paul Belmondo vive o que poderíamos chamar de “anti-tragédia”, onde a sucessão de gestos a atos sem qualquer motivação aparente, sejam eles um assassinato ou erguer a saia de Jean Seberg, parece ser a regra. Mesmo o seu fim desgraçadamente reles, morto pelas costas e em plena rua, é magnificamente desmontado pelas caras e bocas que faz antes de, afinal, morrer. Na forma como expressa tal imotivação intrínseca à vida, é lícito dizer que Godard foi mais existencialista que os existencialistas.Acossado conheceu sucesso de crítica e de público, tornando Godard uma espécie de deus para a juventude politizada da época. Para eles, era como se o cineasta, utopicamente, simbolizasse o futuro. Olhando retrospectivamente, entendo que Godard representava não “o”, mas um ou vários futuros. A atualidade, nesse sentido, está presente em seus filmes na medida em que preconiza tais “futuros”: os jovens maoístas de A Chinesa (La Chinoise, 1967) são, de fato, os mesmos que tomariam Paris em 1968; e, num filme bem mais recente, Elogio do Amor (2001), a violência norte-americana, expressa em suas incultura ou falta de identidade e necessidade de apropriação da identidade alheia, parece antecipar os atentados ao World Trade Center, ainda que não os justifique – e atos terroristas, dadas as suas justificativas, são, por definição, injustificáveis.Ainda no decorrer da década de 1960, Godard seguiria desenvolvendo seu discurso crítico, lúdico e alusivo, repleto de citações cinematográficas, literárias e filosóficas. Enquanto O Desprezo (Le Mépris, 1963), tido por muitos como seu filme mais “acessível”, tem como tema, nas palavras do próprio diretor, “pessoas que se observam e se julgam, e depois são, por sua vez, observadas e julgadas pelo cinema”, Alphaville (1965) é uma ficção científica narrada como um filme noir e que recupera a fé na Palavra como apenas a literatura de Thomas Pynchon seria capaz. Em ambos, e em todos os outros filmes dele, sentimos o peso e a leveza de uma outra afirmação de Godard que talvez os liberte de sua complexidade: “Mais o organismo é complexo, mais ele é livre”.Alphaville: linguagem é realidadefoto: divulgaçãoCom isso na cabeça, podemos talvez penetrar com mais calma e retidão no universo de um autor que acabou por desenvolver uma escrita cinematográfica ensaísta, recheada de aforismos provocadores e de imagens eloqüentes, buscando encontrar o lugar do artista num mundo onde a arte está praticamente morta.Ao nos fazer deparar com a repetição do milagre da concepção da Virgem em Je Vous Salue, Marie (1985), por exemplo, Godard parece nos dar informações importantíssimas sobre o lugar do homem num mundo desumanizado. Ali, nem mesmo a palavra, e a palavra divina, parece ter o seu lugar assegurado. A repetição do milagre torna-se a repetição de uma farsa. Logo, se a Palavra está morta, morta também está a arte e morto está o homem.Esse pessimismo ou “otimismo triste” estaria compaginado aos seus filmes posteriores. Num mundo em que tudo é mostrado e visto, e sobretudo repetido, Godard nos avisa de que já não somos mais capazes de ver o que quer que seja. Quando a pornografia de qualquer natureza é a regra, a imaginação não encontra espaço para trabalhar. Desde meados da década de 1980, é o Godard ensaísta quem ganha corpo em filmes que analisam a natureza da própria imagem e como nos relacionamos com ela.Nossa Música (Notre Musique, 2004) tem uma seqüência emblemática dessa reflexão, quando Godard denuncia, em pessoa, o quanto a montagem dita “clássica”, com seu campo/contra-campo, elimina o outro, o próximo, posto que nos torna iguais, desindividualizados. Portanto, as imagens a que estamos expostos todo o tempo, de toda forma de violência, banaliza o conceito que temos de imagem e da própria violência. A “banalidade do mal”, conceito de Hanna Arendt, está expressa no conteúdo dos filmes aos quais assistimos, onde o peso de cada imagem não é pensado e tudo se torna gratuito, impessoal e desumanizado.Com uma fortuna filosófica de tal qualidade, Jean-Luc Godard continua nos obrigando, a cada novo filme, a simplesmente parar e pensar um pouco sobre o que estamos vendo. Como quem se pergunta “e o lugar do homem, onde é?”, o Picasso do cinema desconstruiu mundos de idéias feitas e, genialmente, colocou questões e dúvidas moralmente imprescindíveis e incontornáveis no lugar. Longe de almejar respostas, Godard quer mesmo é buscar as perguntas certas.




Pierrot Le Fou:






Notre Musique:

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